ceará
amanda guimarães
amanda moura
entre os códigos do amor, da carta e do poema.
naquela noite tudo era arrepio, vento frio nas têmporas, tilintar de brinquinhos nas orelhas, cheiro do meu batom em você, em suas mãos pequenas, tão iguais às minhas — só o polegar é mais largo, longo. nessas mãos eu entreguei meu mundo: prateleiras para que você montasse, versos da rich para que você gostasse, meu corpo para que você entrasse.
e você monta. e você gosta. e você entra.
e você abre fissuras em mim: fenda e tesão às quatro da tarde.
o que pensarão os vizinhos?, você se pergunta
se é mesmo uma mulher
embora se saiba incorrigível sapatão, e eu
me sei mulher, contudo faço troça,
número 37, blefe: “não há letra nesta sigla que me arremate”.
onde eu caibo senão em você?
ana mundim
solitude
annalies borges
de virtualidades revisitadas
Corpo em espaço, parado, alheio
Respira
Estado de alerta. Estado em redes.
Virtualidades secas atravessando a carne
Modificando códigos binários
Solidificando insólitas solidões
Bipes de interfaces gritam-me na madrugada
Ansiedade
Respira
Tropeços em navegações desconfiguradas
Decifrar distâncias e evitar o limbo cibernético
Perigos descortinados
Respira
Paleta de emoções quantificadas
Elaborações da máquina guiando corpos sem corpos
Corpos metonímicos
Eufemizados na rede
Alheios. Sombras binárias de nós circulando mundos
80 dias
9 meses
Respira
Absorve e dissolve
Língua salivando dentes
Vontade de cheiros e folhas de árvores nos pés.
arth3mis
Através de você, nesses meus anos iniciais dessa tão sofrida vida adulta, percebi o quanto fui egoísta. Nas agridoces futilidades da inocência, acabei tirando de você o direito de ser primeira, em suas escolhas, desejos e vontades. Antes de ser mãe, entendo que você é. Você existe.
Com você aprendi a demonstrar meu afeto da maneira mais pura. A cada " - Bom dia", seguido de "- Eu te amo", ritual este que se repete ao anoitecer. A cada cheiro, beijo, riso espontâneo e exagerado no decorrer das horas. Só vislumbro afeto, na sua forma mais genuína. Do seu corpo saiu resistência e memória. Somos história.
Eu sou história a partir de você.
b. benedicto
oniresi
bárbara freitas
breu
Breu,
é preta,
é mulher,
mãe, artista.
Resiliência,
coragem,
na rua, na altura
na vida.
Energia,
insistência,
objetivo
e evolução.
Universo
de desafios,
da arte,
a maternidade.
Mulher Preta Mãe, é arte.
bárbara moira
retalhada
beatriz almeida
matilde
beatriz gurgel
dancei gritando até exaurir o desejo do corpo dancei até que me saiam dragões do meu peito
Invasão descontrolada desavisada, exercício de ficção, construção de narrativas, uma mentira como todas as outras.
Desejei ontem o cheiro do suor de um desconhecido que dançaria agarrado comigo uma noite inteira.
Desejei como quem é possuída por uma besta fera que me engole de dentro pra fora. E de todas as bestas, feras e monstros que habitam dentro de mim, o desejo é o que mais tenho medo. Culpa. Culpa cristã que carrego entalada na garganta. Toda forma de prazer é e sempre foi proibida.
Até ontem tive medo de encarar o desejo de frente, mas a partir de hoje essa fera há de engolir cada pedaço de culpa puta, profana. Que esse monstro rasgue o peito e saia pelos olhos, tome de conta das minhas mãos e escorra pela boca. Que todo pedaço de dentro de mim venha pra fora e dance. Dance dance dance, dance gritando e exorcizando cada mentira que me fizeram acreditar para querer menos, desejar menos, poder menos. Mova os meus pés em direções estranhas, pois o desejo sobretudo tem o poder de mover e levar a novos caminhos. É a energia que toma conta do corpo, que invade sem pedir permissão e que precisa se esvair de alguma forma. Vazar pelos olhos, pelos poros quando suor ou pelos dedos quando escrevo esse texto.
São os dragões que me saem do meio do peito.
Amanhã desejo que as pernas ainda dancem dentro ou fora do ritmo e que eu saiba receber e encarar o desavisado que me foge das mãos.
beatriz inventado
Litografada da Palhaçaria
beatriz salles
beija aragão
homens que viraram plantas
Atrair o Amor de quem Você Ama
Eu vejo o céu tão bonito
O céu grande e imenso trazendo a chuva
Lá vem o céu tão lindo
Trazendo a água que me banha
Eu corro na chuva
me rego nas tempestades de mim
Meu peito derrama
leite que banha a terra
As luzes e clarões dos relâmpagos
Me guiando em caminhos improváveis
encontro os semelhantes
por toda a caminhada
Durante todo o tempo
olhos fechados e peito aberto
Vendo pelas veias que conectam meu coração ao meu corpo inteiro
Em contato com energias densas
Correndo para encontrar essa força
Sinta essa força te guiar
entrando pela espinha e caminhando por cada vértebra
Não deixem que atrapalhem seus processos
Continue sentindo essa força
O corpo machucado com tantas lembranças
Esqueceu o que foi criado para sentir
As memórias ficando vívidas
A força do amor chegando no peito
Bombeando líquidos para todo corpo
Não deixe de acreditar
E no momento mais escuro
Tente lembrar
Continue sentindo essa força
Não deixe que atrapalhem sua fé
Correndo para encontrar essa força
A perfeição existe
Ela é onde você irá chegar
O mais alto que puder
Cada brecha aberta
Nasce uma planta
benia
bruna acioly
camii
o quintal
Quintal, não é exatamente o nome correto, conforme traria um dicionário, para designar este lugar que tanto fez parte da minha infância. Ele se trata,na verdade, de um terreno, localizado logo após os quintais, apropriadamente nomeados, das casas, minha, da minha avó, e da minha vizinha. É dessa forma que o conheço desde pequena, como também todo mundo que conheço e o conhece, portanto não conseguiria chamá-lo por outro nome. Ele pertence à minha avó, e possui cajueiros hoje bem debilitados, não dando mais os frutos de antes. Apanhar cajus e castanhas era a principal finalidade de visita ao quintal por parte da minha avó, tias, e meus irmãos. Quando se desenvolvia uma espécie de disputa: eu e meus irmãos contra minha avó e tias para ver quem chegava primeiro e conseguia pegar mais. Para mim isso era uma diversão, mas me impedia de ter o sossego solitário do lugar para outras “atividades”. Atividades estas, posso dizer, um tanto ... mágicas e diferentes. Estar de volta ao quintal, agora, me faz lembrar com nostalgia desses momentos e de certa forma, eu esperava que a mesma “magia” que me tomava antigamente, quando eu o visitava, viesse a retornar e novamente fosse
atingida por uma forte onda de imaginação. No entanto, estou ciente de que eu mudei, e o quintal também mudou.
O tamanho continua o mesmo, as cercas dividindo-o dos outros terrenos aos arredores permanecem cheias de buracos e em alguns lugares caindo. No fundo, perto da cerca que o separa do terreno da falecida Rosalinda, uma senhora detentora de posses em todo lugar da minha pequena cidade, ficava o “Cemitério dos Bichos”. Ele agora está coberto de mato, alguns desses matos pés de feijão, eu acho, não sou nem um pouco boa em plantas. Lá foram enterrados os meus gatinhos de estimação. A menina “de antigamente” diria que as plantas tinham nascido por causa dos gatos enterrados virados sementes e os feijões mágicos, uma espécie de portal que me levaria a um lugar onde os veria novamente. A mulher de hoje, no entanto, sabe, é por conta do inverno, com suas chuvas, que chegou.
O nome “Cemitério dos Bichos” foi batizado por meu irmão mais velho, também possuidor de grande imaginação. Era uma forma de dar mais dignidade a
nossos animaizinhos. Nós fazíamos uma cruz de gravetos e colocamos acima dos “túmulos” sabendo, então, onde estariam para visitá-los, lembrar de como foram importantes, mas que agora estavam no “Céu dos Animais”, um lugar bem melhor, onde teriam muita comida boa, que nós, de família pobre, não os poderia dar. Lá está o ancestral dos meus gatos, Mimi. Fiz ele prometer que jamais morreria, em um certo dia quando conversava com ele sobre a cama da minha mãe. Porém ele descumpriu, como esperado, a promessa. No entanto, eu sabia, a culpa não foi dele, mas sim de um alguém, dirigindo um carro que não sabia do fato daquele gato ter prometido a sua dona viver para sempre.
E muitos outros lá estão, o Gato Amarelo da minha avó, o Miau Miou, a Riguda, a Pixete, o Miadim, a Agatarréia. Menos o Mil, porque o Mil, com uma das patas extremamente machucada por conta de um atropelamento, fugiu de casa e correu por matas além do quintal. Me disseram que ele morreu, mas eu sabia da verdade: ele tinha acidentalmente passado por um portal e entrado no “Mundo dos Brinquedos”, onde tornou-se um herói gato de três patas.
Quem também não estava lá era o Gatinho Forasteiro. Esse gatinho apareceu ,bem debilitado, um dia em minha casa e logo piorou. Quando estava a beira da morte, meu pai o levou para o quintal para que morresse ali. Em um rastro de esperança, fui até lá, coloquei uma bacia de alumínio por cima dele e passei a bater nela com um pedaço de madeira. Já tinha visto minha avó fazer isso com um dos seus pintinhos, também bem doente, não sei por que, mas ela dizia que isso poderia curar. Quando tirei a bacia, contudo, o gatinho não aparentava nem um pouco melhor, na verdade, já parecia morto. Voltei triste a minha casa para chamar meus irmãos para o enterro e assim prestar as últimas homenagens ao gatinho que nem sequer teve tempo de brincar com a gente. Quando voltei, porém, ele havia sumido. O efeito daquele “remédio” talvez tenha demorado a surtir e o gatinho teria se levantado bonzinho e correu para procurar a sua mãe. Melhor ainda, pensei em seguida, Elizabeth, minha fada madrinha de infância, foi ao encontro do bichinho, o curou com seus poderes e o levou para ser o animalzinho de estimação de suas filhas. Já tinha visto ela fazer isso no Mundo das Fadas com um gatoelho - como o nome sugere, mistura de gato com coelho existente nesse mundo mágico - bastante machucado. Ela colocou a mão sobre o animal e uma luz emanou dela para o bicho. Após uma explosão de luz e de Elizabeth tirar a mão, o gatoelho estava curado. O mesmo ocorreu com o Gatinho Forasteiro, imaginei..
Além do “Cemitério dos Bichos”, coberto de matos, outra mudança certamente notável no quintal, é a falta de uma árvore de tronco bem curvado e que
também era um cajueiro. Ela ficava em uma parte “estrategicamente localizada”, para separar a parte dos fundos, onde estava o “Cemitério dos Bichos”, do resto do lugar, como um muro. Parecia ter sido fisicamente desenvolvida para ser escalada, com seu tronco inclinado lembrando uma escada sem degraus. Não era boa em subir em árvores, mas essa eu conseguia facilmente.
Subir nela era uma das coisas que mais gostava de fazer quando ia ao quintal. Lá em cima poderia contemplá-lo melhor e tudo parecia mais bonito. Poderia ver também os outros quintais em volta. Terrenos cheios de árvores em uma longa vastidão sem casas. Ficava a imaginar o que teria nesses outros lugares, para mim misteriosos e encantados. Nessa árvore também, chegava até um portal, onde ia para novos mundos e por onde eu poderia chamar Elizabeth.
Ela simplesmente morreu. Não sei quantos anos tinha, mas devia ser tão velha que sua velhice foi tratando de matá-la. Primeiro seus frutos deixaram de nascer, depois suas folhas caíram e novas não surgiram. Por último, seu tronco - escada foi secando e caindo aos pedaços, até restar apenas um toco, mais tarde arrancado a mando da minha avó.
Agora sem a árvore e sem a magia, o quintal é apenas um local de refúgio para se ficar a sós. Talvez nem tanto, porque casas já existem a alguns metros à
esquerda. Nelas, pode-se ouvir, conversas de pessoas que podem vir a me espiar por entre as brechas das estacas das cercas que nos separam. Já não tenho a liberdade de dançar com as borboletas e conversar com meus amigos de outros mundos, até porque já sei, por experiência própria, de isso ser coisa de gente doida.
Diversas vezes fui taxada assim por minha avó, tias, mãe, vizinha e até por meus irmãos mais novos. No tempo, não entendia e nem me importava. Aquele
momento no quintal era o melhor do meu dia. Diziam para eu não passar tanto tempo lá. Minha vizinha alertou minha mãe, o perigo de eu está com algum
problema na cabeça, ou que isso me levasse a um, e o melhor seria minha socialização com as outras crianças da rua. Já a minha avó dizia que poderia ser
um encosto que se apossava de mim. No entanto, era apenas no quintal que a minha loucura parecia me afetar, pois fora dele eu era tida como uma menina normal, apesar de tímida e pouco social, e muito inteligente.
Na escola eu era uma das melhores alunas e queridinha de muitos professores. Boa em todas as matérias, mas a minha especialidade era desenhar e escrever histórias, minhas atividades preferidas, não mais preferidas, no entanto, que ir ao quintal depois das aulas, minha rotina diária, e onde eu tinha contato com os personagens desses desenhos e histórias. Eu pensava do pessoal que me criticava: “bobinhos, é aqui onde encontro essas coisas toda. ”
Agora crescida, no entanto, entendo que não deveria mesmo parecer normal uma criança cada vez “mais grande” ficar sozinha em um quintal “pinotando” e correndo de um lado para o outro. Eram nesses momentos que acontecia meu transporte para universos mágicos, onde conheci pessoas, lugares e aventuras incríveis, coisas não encontradas no meu dia – a – dia , que para mim, às vezes, era até angustiante.
Mas aí, chegou o momento onde comecei a romper com tudo isso. Não de repente, mas de forma gradual, minhas visitas tornaram-se cada vez mais escassas, ou seu significado transformando–se de passeios em outros mundos a pensamentos sobre este. Isso foi evoluindo, até chegar a vez em que ir ao quintal passou a ser algo incomum.
Voltar agora e olhá-lo com esse novo olhar, não novo, mas resgatado, é um desafio. Relembro, com nostalgia, esses episódios que achei terem se apagado da minha memória. Mas relembrar não muda o que me tornei e as minhas crenças de hoje, como também não apaga o que ele se tornou e nem a confusão que castiga minha mente no momento.O quintal transformou–se apenas no que de fato é, um terreno de cajueiros, e minha visão já não tem mais o extraordinário poder de ver além . Poder este que poderia concordar, assim como hão de concordar, não passava da imaginação fértil de uma criança, algo bem normal em tal período da vida. Porém, um pensamento vem até mim, e diz, que quando algo torna-se passado, tanto o real, quanto o imaginado, tornam–se, ambos, lembranças. São imagens, que retornam à cabeça por intermédio da memória. Imagens gravadas, tendo sido vividas, repassadas ou imaginadas, mas ainda assim, imagens gravadas. Portanto, de volta ao quintal, sou compelida a abraçar as lembranças que ele me
traz em toda sua vastidão e natureza de imagens. E é isso que faço.
camila p.
umamão molhada
caroline diniz
lenço
O que resta é me lançar
Na direção do vento que bater
Em meu corpo para me lembrar
Que existe muito além do que posso conhecer.
E se você vier, só te peço
Para não esquecer o motivo da volta
E nem o lenço - para quando você voar:
Mesmo que seja em outra rota.
O laço de fita que encontro na avenida
Em dia seguinte de folia, a chuva que serena
E semeia o que ainda vem,
Assim como, quem serei.
cássia albano
transmissão
cibele bonfim
envivecer
Minha bisavó falava um "dialeto".
Ninguém, que eu saiba, sabe a origem dessa fala.
Sei que ela usava desse artifício pra falar assuntos que as visitas não pudessem
saber do que se tratava e também pra mangar do povo.
Seu nome era Carolina.
Um nome bonito, mas que ela não gostava.
Tinha raiva de quem lhe chamasse assim.
Se apresentava “Calô”.
Para nós, “madrinha Calô”.
Aos trinta e dois anos ficou viúva com seis filhos.
Casou-se novamente e mais três filhos teve.
Quando seu filho mais novo da primeira leva, meu avô, conheceu minha avó
Raquel, ela tinha só13 anos. Passados seis meses se casaram.
Falsearam a certidão a de nascimento de Raquel pra dizer que já tinha 16.
Quer dizer, falsearam não, porque certidão minha avó nunca havia tido.
Tiraram o papel porque, afinal, para casar era preciso existir.
Sem ter casa pronta ainda, foram morar os dois nas Lajes, na casa de Calô.
Sertão Central, meio do caminho entre Quixeramobim e Senador Pompeu.
Foi lá que vó Raquel deu fé pela primeira vez do dialeto.
A sogra e suas filhas, as que ainda moravam com ela, falavam no tal jeito pra
que vovó não entendesse: não entregavam assim fácil, a quem chegasse, a sua
mandinga. Mas Raquel foi pegando o ritmo. Aprendendo uma palavra aqui,
outra acolá. E assim se criou: “cobra criada”.
“Cica, bota a pona no cuti com donua e xina e envivece uma grila que caqui tá
adiante de iditá!” – bradava Calô.
Mamãe e os irmãos, ainda crianças, iam perguntando sobre o dialeto
à madrinha Calô, e a velha, para os netos, ia soltando algumas palavras até
onde a paciência lhe permitisse:
– ô, Calú! como é que se diz galinha?
– “...”
– E feijão?
– “...”
– E panela?
– “...”
– E macarrão?
– "E lá existia macarrão nesse tempo, menina?"
– !!!
Pronto! Acabou-se perguntação!
As reticências nas respostas são porque se Calô não revelava a qualquer um o
seu dialeto, não sou eu que vou entregá-lo aqui assim, à sua revelia.
Mas tem uma palavrinha, um dizer dessa sua fala,
que eu vou ter que lhe pedir licença para aqui me referir.
Quero falar da palavra matar.
Matar, no léxico de madrinha Calô, se diz "envivecer."
Como é que envivecer é matar?
Isto dá um nó no pé da linguagem.
Um jeito de negacear com o entendimento? Inverter a equivalência entre
significante e significado para quebrar a linearidade do
processo comunicativo?
Ou seria poesia? Instaurar a ambivalência necessária à sedução que só a arte ou
as culturas descomprometidas com a acumulação ocidental conseguem fazer?
Envivecer não prestaria conta ao entendimento e sim ao sentido: o ciclo de
vida-morte-vida que encerra toda existência?
É meio.
É a faca e é o gesto.
Encarna o ato entre o matar e o morrer.
Envivecer traz notícia do tempo quando não havia sido ainda inventado o fim.
clauds carvalho
florecer nas sombras
dayane araújo
[Certos silêncios permanecem onde tanto se quer ouvir e assim, prossigo uma soma ambulante de memórias, desejando não senti-las escorrendo por entre os dedos, infiltrando-as. O corpo em seus interstícios sendo passagem vira paisagem.]
'Conto a inquietação de cada gota que me percorre como infiltração' é um bloco de notas criado a partir de catalogação imagética produzida por mim, uma mulher fortalezense, dos onze aos trinta anos de idade, de registros de memória familiar, íntima e ordinária. Se trata de um projeto entre o documental e o autoficcional, sobretudo partindo da relação de reaproximação de minha mãe ausente por questões de saúde psicológica, no qual abordo memória afetiva e intenção fotográfica, o processo de edição de acervo como autoanálise, obsessão por prevenir lapsos temporais por meio de narrativa poética. A proposição surge de uma insistência recordatória para lidar com o medo da propensão genética ao esquecimento.
Composto por fotografias vernaculares registradas por diversos dispositivos digitais e analógicos, o trabalho ressignifica memórias colecionando ordinarismos, brechas do cotidiano familiar, casa de avós, relicário de pequenos objetos herdados, um pente em formato de peixe guardado há quase um centenário, espaços íntimos, leitos com seus lençóis emaranhados, uma série de fragmentos de corpos justapostos como paisagem, constelações de sinais e movimentos. Percorrendo salas, quartos, banheiros, o trabalho é um grande "corredor" em meu exercício labiríntico de lembrança que fabrica uma casa fortalezense reacomodando os anos noventa e os anos dois mil numa cronologia muito pessoal. Acredito que em busca de fundar uma nova terra onde ponha os pés ou uma nova mitologia familiar que exploro esse delicado limiar entre arte e autoanálise, entre o público e o íntimo. Por fim, 'Conto a inquietação' busca encontrar leveza e partilha ao revisitar memórias, narrando num gesto poético formas de contar os tempos (im)possíveis e seus desdobramentos; Uma caixinha de recordações daquelas que guardamos no fundo do guarda-roupas ou debaixo da cama.
elisa maria
Carrego comigo o nome de minhas avós e de muitas avós. Essas outras posso até não ter conhecido,
mas tenho algo em comum com elas. Minhas meninas, tendo sido avós ou não, têm outros tantos
entrelaces. Exatamente o que seriam eu não sei dizer...
Será que elas sentiram dor? Choraram?
Encheram e esvaziaram o peito? Prenderam o pente no cabelo? Tomaram banho de açude? Tiveram
decepções? Foram paridas? Sentiram sede? Perderam alguém? Furaram o dedo? Tomaram gota santa
depois de comer demais? Será que quem as fotografou perguntou de suas dores?
fernanda luá
Às vezes somos dominados pela angústia e o medo e nada parece fazer sentido. são nesses momentos
que chegamos aos extremos de nossos atos e emoções. não enxergamos salvação em si mesmo e nem
no futuro diante de si. Em um desses instantes tortuosos, depois de noites insones e pensamentos obsessivos, perdida em mim mesma, vivendo em um local estranho e velho a mim, olhei o céu de meu quintal.
Seus tons de rosa e lilás me inundaram aos poucos, era tão belo que aos poucos voltei a crer na imensidão do divino e que o universo me salvaria. depois de mergulhar naquele oceano olhei ao redor, vi uma parede em ruínas e folhas cerceadas de tons lilases. Lá estava eu vibrando aqueles tons, na imensidão do céu a contemplar o estar ali.
O universo me presenteava com um início da manhã, com mais um dia, de um outro dia, de um novo eu.
fernanda rodrigues
eu, mulher
Eu, mulher. Aquela que sangra pelo corpo e pela carne. Aquela que se nutre de esperança. Não alimento ninguém por ora. Sou a minha vibrante onda sonora. Não preciso de santo pra quebrar o encanto. Preciso transbordar, vez ou outra, eu invoco uns orixás. Vou flertando com o destino assumindo riscos que chamam de desatino. Eu, mulher, recrio as danças ancestrais no meu quintal, não estou interessada na vida banal, nos devaneios coletivos e coisa e tal. Sou a minha casa, sou a minha lei, e sabe-se lá, se eu realmente sei.
fran nascimento
do que me engasga
no meio-fio, ao meio-dia
não sei se sorrio à virgem maria
não sou desejável com minha mochila
não sou desejável aos vizinhos em minha vila
sob duas rodas, vermelha monark
sinto-me sob constante ataque
mas eu sou é do contra-ataque sutil
eu não rimo bonito
nem sobre Sobral, nem sobre o Brasil
nas ruas, observo e sou vigiada
nas ruas, julgando e sendo julgada
o sol que queima minha pele
também queima minha alma
um dia me vi sem meu peso
sem a mochila velha que carrego o mundo
descompasso em cada segundo
nasci aos catorze dias de junho
sob buzinas de um trem imundo
sob pedradas que quase me matam
aquelas que subjetivamente matam
as ruas, também os guetos me trouxeram
perdidos ou não, a mim vieram
poemas de muros que levam
a tantos outros mundos distantes
gritos que não são mudos mas ecoantes
o som dos tumultos nos trânsitos
pessoas zumbis que vivem em transe
eu sei dos caminhos diários de tantos
e eu sei das mães pretas, o pranto
a gente só sonha que um dia vai dar certo
andando de frente e nunca de ré
nasci nas quebradas e bote fé
nunca nos olham nos olhos de perto
descaso de cada um aqui presente
que pôs-se a rir da esmola ao pedinte
não era a cidade que transborda nas telas
e pintam Sobral com arco, em aquarela
querendo ser resistência
mas na esquina, quem me protege?
não sei a quem temo
se quem foi eleito ou quem o elege
escrevo poesia em cortes
rimando sempre um
passo a frente da morte
Escrevendo sob pressão
quanto
mais depressa,
depressão
Na pátria armada, Brasil
falo sobre viver diariamente
no free fire da vida real, como diz Leandrin
aprendi a recuar um ou dois passos
pra avançar dez mil a mil por hora, sempre a frente
não quero rima carregada,
mas é o peso que carrego nas costas
e a cada dez, abafo um grito
minhas rimas pobres,
porque meu salário não custeia
nem meu primeiro verso
e no CIStema perverso
p/erdi a cabeça: "mais gentileza! voz branda! cala a boca! seja fino!"
Lembrei da poesia de Marcelino
A PAZ ESTÁ PROIBIDA
Não visto camiseta nenhuma, NÃO Senhor.
Não solto pomba nenhuma, NÃO Senhor.
A paz é toda branca certinha tadinha.
À paz que mora no seu tanque
e que existe para...
há!
tirar minha paz, digo
não sou adestrada, não sou silenciosa e não sou pacÍfica
ouça...
com atenção ouça...
[pausa]
o silêncio te frustra?
lugar de escuta assusta
mas eu sou muralha, fortaleza, viçosa, cariri, sobral
eu vim de longe, vim de lá pequenininha (eu vim de lá pequenininha...)
aprendi a construir o novo em recortes de livros amassados me dados no fundamental
e vi que fundamental mesmo, são nossas bases,
os nossos e nossos corres,
que no final ninguém socorre e é só corre!
não sou médio, superior, e isso tampouco me define
mas sou fundamental para alimentar as cadeias (não as públicas), nem de mão-de-obra barata, mas as cadeias produtivas de circuitos culturais,
aquele vetin ocioso, da esquina,
hoje PRODUZ sua batalha de MC!
E quando disse em certa poesia
que da periferia surgem potências,
CUIDADO! Matamos o Estado das bases.
Criamos as nossas educações
na construção de mundos em que considerem a nossa existência.
AÍ ESTÁ NOSSA RESISTÊNCIA!
CUIDADO! Levamos o Estado à falência...
falência múltipla de todos os órgãos.
PROSSEGUIMOS!
recriando o vital
matando a moral
rap de beco a beco fatal
dentro de mim, tem guerras internas
erguendo a cabeça quando quero cair
cambaleando, quebrando, mas não vou partir
e rindo com os meus, recitar e ser re-citada
re-criar, e ser re-criada,
re-tocar, e ser re-tocada,
equilibrando a revolta, revolução,
com a não naturalização dos baques que a vida dá
é trabalho, estudo, produção,
peito pulsa, o coração,
amor, amantes, rolês, irmãos,
família, armário, emoção,
ansiedade, negação,
tristeza, raiva, alegria...
de vez em quando
fazendo tudo ao mesmo tempo,
e sem tempo pra pensar
só de estar viva
sou a utopia dos ancestrais
a se concretizar
com essas palavras eu dou meu adeus
pedindo a Oxum, sete-peles ou javé
que olhe com cuidado pros filhos pretos teus
a gente é divino e quem é tu pra dizer que a gente não é?
então, salve!
eu sou antiga poesia
então, salve!
nós somos correria
aos meus, aos nossos
que venha a nós, o nosso reino
wakanda, palmares, pra sempre, em todos os guetos!
g gomes
gabriela queiroz
olhando para si
geysa moura
germina
Germinar é o processo pelo qual um organismo cresce a partir de uma semente ou estrutura semelhante.
Germina surgiu pela necessidade que eu tinha em criar uma arte têxtil feita de forma intuitiva.
Assim como caminhar à deriva, o crochê e o bordado saem à deriva, as linhas e a agulha tomam vida própria e seguem seu próprio rumo, formando tramas espontâneas, sem moldes preestabelecidos. Esse exercício me mostrou que pra desabrochar a vida e produzir arte é preciso teimar, resistir, persistir e prosseguir. Por mais que os caminhos sejam tortuosos é preciso cravar nossa alma naquilo que a gente acredita, naquilo que nos importa de verdade que é a busca pelas várias maneiras de existir.
ionara sena
Sonhei que haviam búzios dentro das crateras da Lua. Esse foi um impulso para escavações dentro de mim. Essas fotos são no meu quintal, onde vivo desde que nasci. Uma cratera se abre em memória. E essas memórias são como preciosos búzios.
ivy collyer
janaina bento
dançar é agenciar os agenciamentos do corpo
“O desejo cria agenciamentos; mas o movimento de agenciar abre-se sempre em
direção de novos agenciamentos, porque o desejo não se esgota no prazer,
mas aumenta agenciando-se”. (GIL, 2013, p. 54)
“[...] o que é um gesto dançado senão um agenciamento particular do corpo?
Todo o gesto é, por si, um agenciamento; mas em geral agencia o corpo
a um objeto ou a outros corpos”. (Id., Ib., p. 55)
GIL, José. Movimento total: o corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2002 (3ª imp, 2013), 208 p.
Na dança podemos também agenciar ideias. Agenciar mundos. Conectar pessoas. Ideias são objetos? Mundos são corpos? Corpo é objeto quando é agenciado? São várias coisas a se pensar quando se trata de dança. De como se opera na constituição da dança. Pensar é agenciar. Agenciar é compor. Composição trata de relação e de como se organizar elementos. Elementos que adquirem sentido em relação, mas que sozinhos também tem sua potência criadora. Agenciar não é sinônimo de ordenar, de colocar na mesma linha tempo e acontecimento. Agenciar diz muito mais de percepção que colocar algo em sequência um atrás do outro. É negociar com os elementos. É direcionar. Se fizer sentido uma ordem cronológica, que seja. Se a desordem for a ordem, que seja. Esses ajustes provêm dos desejos de que os gestos se reverberem, que continuem em movimento, pois o gesto não finda, ele gesta. Gesta e continua gerando. Gerando e gerindo movimento pela vontade, pelo desejo, pelo prazer de estar movimentando e fazer movimentar. É disso que trata a dança, de desejos que se agenciam nos gestos que movimentam dança. Gestos dançados, dançantes. Gestos que abrem espaço. Que ligam espaços. Que põem o espaço em movimento tornando o lá, aqui. Colocando o fora, dentro e fazendo esse sair. Sair um corpo, de um corpo, no corpo, ser corpo o objeto. É desenhar a dança ao mesmo tempo em que se dança o desenho. O corpo carne é papel corpo desenhado. É gesto dançado quando agenciado. Um ajuste entrelaçado e propiciado pelas experiências desse agente. Experiencias que se atualizam sempre em relação com os desejos que não se esgotam, pois sempre apresentam novas formas de atualização. Desejos que movimentam a dança que move os agenciamentos sempre em movimento. O prazer da dança em sua potência criadora se dá na relação de mover e ser movido. É o gesto que gesta e continua gerando...
jaque rodrigues
tudo que eu posso abraçar
joyce s. vidal
praias periféricas
Praias Periféricas é um ensaio vivo que retrato algumas praias localizadas nas periferias de Fortaleza/CE nos últimos cinco anos.
Após muitos diálogos no decorrer dos últimos anos, tomei a atitude e forças para colocar pra fora muitos pensamentos e vivências que acontecem em nossas vidas, e por conta de tanta correria, trabalhos suados, além dos percalços da vida, podemos nos tornar quem perde a capacidade de se olhar e olhar para as outras pessoas com calma. Penso nas pessoas que assim como eu, por muitas vezes tiveram as suas mais brilhantes capacidades arrancadas de alguma forma (sistema racista/projeto elaborado para nos matar), mas que após cuidados internos constantes e coletivos, conseguimos voltar para a superfície e respirar. De tanto mergulho que damos existe o medo de se afogar.
júlia moreira
gênesis
o poema emerge inseguro
daquele lugar estreito
entre a dobra da cintura e o peito
onde fica o que se finca na carne
e não se esvai com as lágrimas
aquilo que os olhos fingem
não ter nem ser
mesmo sendo tudo o que se é.
se expande pelo corpo
atravessa os ossos e membranas
é cuspido para fora como um jato
escorregando sobre a rigidez da pele
desviando os pelos
engolindo à força o muco.
se olhares bem de perto
encostando a ponta do nariz no papel
verás que entre os versos
por dentro da letra garranchada
habita um corpo injuriado e cataclismado
um ser em sua forma mais primitiva
com os braços envolvendo as pernas
como um feto prestes a nascer
a carne exposta ao toque
a respiração seguindo o ritmo do verso
o sangue quente transpassando a pele
chorando ao perceber que reencarnou o mesmo
a linha que carrega em suas costas
as pesadas palavras.
juliane alencar
sweet nuthin
ka
do pardo, das nordestinidades e do apagamento indígena: uma escrita auto-coletivo-biográfica em direção a autonomia
a colonialidade se alastrou violentamente e sorrateiramente em nossas mentes. é preciso se atentar que a subversão não anda na mesma linha de tempo e espaço do que está posto. assim, a dualidade preta ou branca (em relação a mundos, não apenas peles), como toda e qualquer dualidade imposta estrangeiramente, não abraça existências plurais. aqui quero colocar palavras direcionadas a pessoas que se vejam para além de corpos, como um campo•memória em expansão que transgride a dualidade negra/branca e carrega filosofias que se entrelaçam e estrapolam espaços e tempos - aqui e agora. para falar - numa escrita auto•coletivo•biográfica - preciso narrar a partir de experiências que fluíram entre e através minha existência. hoje me autodeclaro Parda pra pegar essa identificação colonial e trabalhar nela as violências de apagamento e silenciamento em minhas matrizes. me dou a oportunidade de discutir e procurar possibilidades nesse processo de autoidentificação racial a partir da subversão, retomando o enraizamento indígena de minha ancestralidade.
me reservo a falar em Nordeste não porque queira me limitar ou fortalecer fronteiras que já foram impostas na Terra, mas porque quero deixar evidente que já há fronteiras, não apenas físicas (com cercas no chão e linhas em mapas), mas também em falas, pensamentos, sentidos e sentimentos, experiências e intelecto. falar a partir de Nordeste é colocar minhas ideias pra disputa entre mundos, onde esse território foi e ainda é colocado como algo a ser desenvolvido; um lugar a ser estudado e explorado; um mundo encantado, rico em cultura popular e pobre em conhecimento científico; que precisa a todo momento de ajuda de seres estrangeiramente desenvolvidos para que nos digam quem somos. nordeste é invenção que se deu a partir de genocídio, escravização e silenciamento indígena. para uma movimentação em busca de nossas autonomias políticas e espirituais é necessário que se marque a presença nativa desse território-nordeste e que não nos limitemos ao reconhecimento de estruturas brancas européias. não precisamos acatar em nossa filosofia o que instituições do Estado implantam. nossa identidade não deveria se limitar ao carimbo, certificação ou aceite da estrutura colonial. bato o pé no chão, ponho minha mão na terra e digo que não tem cálculo, estudo e nem análise de instituições coloniais que pautem quem eu sou.
é preciso manter a mente, o coração e o espírito conectados com a criticidade diante da cisão que povos europeus fizeram no percurso de famílias indígenas. homens dessa Terra foram escravizados e assassinados, mulheres foram escravizadas e estupradas, seus filhos e filhas foram escravizados e usados por homens brancos europeus pra posse e domínio da Terra, seus netos foram escravizados e suas identidades foram apagadas no laboratório da miscigenação, seus bisnetos foram jogados nas periferias dos centros urbanos, das capitais do nordeste, assim como de todo o país e ainda têm a mente e o corpo sob domínio colonial.
assim como povos africanos foram e ainda são reduzidos em Negros, estão em diáspora e não sabem de qual galho do Baobá se originam, aqui também diversos povos desse território foram retirados, misturados e reduzidos em Índios - para uma ideia purista e colonial - e Pardos/Negros, Sertanejos, Cearenses, Nordestinos, Brasileiros - para os que foram jogados no laboratório colonial da miscigenação - e não sabemos de qual ramo da Jurema viemos. nessa ficção várias armas e armadilhas nos atravessam e ainda que possamos requerer um broche escrito "decolonial" ou "descolonizado" para ostentar em nossas blusas, precisamos atentar as várias armadilhas coloniais que estão ativas em nossas mentes.
a ideia colonial de indígena é carregada de estereótipos, vista como uma sociedade pura, mágica, intocável, folclore que se materializa vez em quando - e não temos nenhuma relação enraizada com esses seres. como se no laboratório da miscigenação, após a invasão do branco, os europeus tivessem exterminado alguns povos indígenas, outros colocou em gaiolas-aldeias e, na criação do pardo - como quem se cria Frankstein -, as substâncias políticas, filosóficas, espirituais e culturais que foram colocadas na mistura fossem somente de origem branca européia e negra africana, nos enclausurando numa falsa escolha binária.
se todas as palavras que foram colocadas aqui, tiverem deixado sua mente empolgadamente confusa, essas palavras cumpriram seus objetivos. nordeste e sertão são ficções coloniais e todos os dias essa invenção é renovada e cabe a nós questionar os roteiros dessa grande ficção, nos colocando também como autores de nossas histórias e carregadores de imaginações e memórias. que possamos rever os caminhos que nos trouxeram até aqui e atentemos para onde direcionamos nossas caminhadas de volta nesses ciclos. a riqueza de minhas ancestrais não vinha de materiais extraídos com violência do solo, seus corpos eram ricos, saudáveis, regavam e nutriam com seus corpos a cada passo que davam na movimentação por essas Terras que não reconhecem donos, nem realezas. não aceitar uma classificação ou identidade externa a mim é o mínimo que a Terra me pede e discutir nossa história e nossas raízes é o que proponho em um dos caminhos nessa encruzilhada honrando a minha ancestralidade.
karina das oliveiras
passagem
As alternâncias dinâmicas das memórias dentro de nós são como as danças solares nos tempos cíclicos. Perceber o miúdo da semente e refletir em pleno sol quente diz muito sobre o silêncio do que cresce e emana luz diariamente. A luminosidade estimula brotamento da folha, da mulher, do pedaço do tempo, da impressão daquele presente escrito nas histórias. Histórias que contamos entre nós, sobre nós e para elas. Acompanhar o caminhar do sol e suas cores entres sombras e luzes de uma tarde é o motivo gerador dessas fotografias digitais. Trata-se de um estudo diário sobre si e foi realizada em parceria com a artista Babosa Maresia que trouxe o brilho do instante ao registrar alguns desses dias. A série fotográfica Passagem solar reluz na busca de nutrir o dentro com a luz do sol e reflorestar os sentimentos para continuar novos ciclos.
lais eutália
por uma escrita irresponsável
Escrevo porque eu quero e é o que sei fazer. Juntar palavras, planificar ideias que muitas vezes nem são tão conexas. Não tenho na minha escrita pretensão de responsabilidade. Nem quero ter. Deixo as responsabilidades para o cotidiano, para os papéis de energia, o gás que se acaba.
Eu escrevo o que eu quero e pronto. Não vou salvar o mundo, eu sei. Quero salvar a mim mesma e se eu conseguir terei feito muita coisa. Ajudar quem eu posso com o que eu posso e faço. Visto que, como diz sabiamente um tal Mateus eu também faço como posso, quase que não posso e faço mesmo assim. Eu faço é muito. Quem achar pouco, que vista minha pele e se vire de sol a sol, renovando as escamas e inventando a sobrevivência. Não preciso de mais responsabilidades e nem que digam sobre o quê eu devo ou não escrever. Essa coisa de responsabilidades artísticas.
Em verdade vos digo: minha responsabilidade é comigo mesma. No papel ou em ecrãs quaisquer, imaginar realidades que me foram impossibilitadas. Sonhar com lápis, canetas e toques em telas. Fantasiar futuros é meu dom. E não me venham dizer que é inútil e quer saber... Que seja!
Deixo as responsabilidades para o dia de sol a beira mar, com areia fofa até as canelas, sem protetor solar servindo na barraca de praia. Deixo as responsabilidades para os corres diários nas ruas da favela que moro, atrás da farinha e do feijão. A minha escrita é irresponsável e aqui não me refiro a fazer vista grossa para as maldades do mundo, nem silenciar diante do machismo, racismo, lgbtofobia e todas as mazelas gestadas por esse cistema. Não tenho que dar conta de tudo que querem que eu seja. Minha militância e resistência é a minha vida! A escrita é minha rota de fuga. Se o que traço com essas linhas os incomoda, fico com ainda mais fôlego. Sinal que peguei a estrada certa!
lara machado
larissa batalha
rio Vazante e as memórias.
“...a transmissão do conhecimento é um dos processos elementares na evolução cultural e na compreensão da relação entre pessoas e natureza.” (Soldati, G. T.; 2013)
Vocês conseguem ler e ouvir suas ancestrais?
A sobrevivência não é apenas na transmissão de genes, reside muito na transmissão de memória.
Desde nova ficava maravilhada na quantidade de aventuras vividas pela avó em meio às matas, iguarapés e bancos de areias amazônicos. Até que um dia ficou evidente que muito da demanda em ser passarinha (não que “inha” seja um sufixo de fofura) era muito mais que uma expressão poética em torno de liberdade, era uma herança levada pelas memórias e gestos convivídos/expressados por quem se cultivou hábitos de existir no mundo nesse eterno jogo de deslocamentos e trajetos. E ouvir nem é sobre aceitar tudo como verdade, é mais sobre reconhecer que sendo a vida uma espiral, passos/voos e momentos já foram dados e ainda serão por elas/nós.
Envelhecer pode ser cruel. Não pelas limitações de um corpo fisiologicamente marcado com suas funções e finalidades determinadas em parte pela relação entre às expressões genéticas e relação do indivíduo com o meio… mas pode ser cruel justamente pelas forças externas que ao interagirem com às internas podem culminar em fenótipo patogênicos/deteriorantes inclusive das subjetividades que compõem a pessoa.
“ O tempo e o espaço não são lineares: são cíclicos” (Pablo Solón; 2019)
Um banco de areia surge nos períodos de estiagem/vazante, quando as águas dos rios amazônicos baixam, surgem formações arenosas resultantes da deposição resultante das forças erosivas das águas que descem dos Andes. Aqueles bancos de areia são toda a acumulação de memórias minerais trazidas de pontos anteriores e que emergem apenas num lapso cíclico ecológico resultante das estações. Essa espiral se repete, não no mesmo ponto, num ponto diferente mas que se repete. Ou melhor, nem repete, pois às mesmas condições jamais se repetem. Nem mesmo o melhor experimento científico que siga os mais rígidos protocolos será capaz de fazer um comparativo semelhante por completo, faz sentido. Sistemas fechados não existem e a memória se reinventa a cada vez que é repetida e novamente escutada.
Não existe memória fixas, a cada vez que ela é repetida eu vejo um banco de areia, repleto de trinta-réis-grandes sob um luar a cuidarem de seus ninhos. Ela andava por entre eles a brincar e ficava a espreita de tartarugas (cágados) fêmeas que iam por seus ovos naqueles finos sedimentos arenosos. A partir do momento que às fêmeas se posicionavam para por sua prole pra serem gestadas na terra, eis que ela surgia e às capturava. Era alimentação, era sobrevivência. Falo de um interior pouco visto e quase nunca sentido por quem habita no litoral.
O mar turquesa, às falésias, paleodunas e campos dunares são incríveis. Mas você já parou pra pensar na força que também - nem maior, nem menor- mas também reside nas forças fluviais? Aquelas águas atravessam N obstáculos para cair no mar. Abrem brechas e permitem fertilização do solo, renovam às vidas e proporcionam o fluir de energias.
Não é sobre a memórias de uma senhora que amo, que tá se fragilizando/fragmentando por questões fisiológicas. É mais sobre a importância de se repetir a contação de histórias para permanecer(mos) viva(s).
“Descolonizar-se é reclamar nossa vida, recuperar o horizonte.” (Pablo Solón; 2019)
Fico realmente preocupada com o desenho presente que insiste em apagar o passado, eu não sou a favor do saudosismo, até porquê o extrativismo, caça e afins eram bem problemáticos. Se bem que só se tornaram problemáticos após terem sido cooptadas pela lógica capitalista de crescimento dos meios de produção, que implicaram num aumento do usos dos recursos naturais num geral e estamos aqui… vivendo esse antropoceno desmemoriado em meio ao delírio da colonização espacial.
A falta de memória implica numa falta de referencial, o que pode ser incrivelmente potente como se ter um terreno limpo para cultivar, mas pode ser terrivelmente castrófico pois um terreno assim pode ser habitado por monoculturas, e talvez para tá limpo foi necessário retirar toda a flora nativa/complexa/dinâmica e ecossistêmica.
Volto aos rios e bancos de areia deste ponto, não são só imagens de uma região norte pouco trazidas ao imaginário, é só mais um filo da sistemática do imaginário coletivo, trago essas imagens pra falar que quando se emergem memórias - tal qual um banco de areia emerge na estação vazante- pode ser impactante pois pra isso metros de níveis do rio baixaram, mas quando essa memória se apresenta eu posso passear por esses bancos e voltar a imaginar como seria/foi um mundo menos degradante como espécie, e mais alinhada com os ciclos naturais.
Ouçam e recontem suas histórias. A memória é viva e em parte se refaz na repetição e mutação, pois a cada conto ela se atualiza nos afetos e permite novas imagens. Voltemos a ser terras com floras complexas e ecossitêmicas.
larissa moraes
grito-poesia
larissa rachel gomes
levi banida
lívia carneiro
metamorfose
louise formiga
história em corpa
Minha corpa nasce numa capital nordestina, uma das que não é tão turística, mas nem por isso menos explorada. Pedaço de chão fervilhante e afoito por crescimento que gera gente agoniada. Como eu. Crescida dessa e nessa terra, dela guardei o calor, as cores e os pés, rachados.
Ventre que me transportou até aqui e o ventre que o transportou também, trilharam uma jornada de sangue e suor para que eu pudesse alcançar um Norte. Mas Esse lugar, que quanto mais perto eu chego, mais longe de mim me sinto, não me parece com lar. Eu tenho tentado voltar, apontar os pés de traços diaspóricos ao Sul. Caminhar a esmo, e ainda assim saber aonde chegar, reconhecer as origens e me enraizar. Eu sou lá onde eu me vejo.
E esse caminho começa com uma cartografia da minha corpa. Na medida em que eu me atravesso, reencontro todas as corpas que chegaram até aqui, através de mim
Eu sinto que devo contar essa história porque corpas como esta já foram queimadas, subjulgadas, escravizadas, violadas, assediadas, territorializadas, caladas, escandalizadas, suas vidas tentaram ser apagadas, mas a vida da minha corpa é a prova de que não conseguiram
Minha pele é a minha narrativa. Guarda misturas e marcas familiares, ocupa vãos de uma miscigenação, transita por entre riscos e privilégios e faz de mim um ser de estados. Seios, mãos, coxas, cachos, nádegas, dentes, olhos, canelas, lábios, joelhos estriados, dobras, curvas, carne exposta
Adornada com imagens que ilustram quem já fui, o que pensei, minhas crenças e afetações. Tem sido bordada ao longo da vida com cicatrizes. Há também mágoas que foram grafadas, pedaços de pele que crescem diferente do todo para mostrar que o me ocorreu, me transformou por dentro e por fora, e merece destaque.
Eu tenho aprendido a respeitar esta corpa e cuidar do que ela me oferece. Receber dos ciclos do meu sangue a força para uma constante mutação. Das intuições, os conselhos de ancestralidade assoprados nos meus ouvidos. Cultivar meus Pelos. Tenho os permitido crescer, e assim voltar a exercer sua função primordial: proteger. De olhares e palavras que me faziam me envergonhar do que sou. Mas uma mulher adulta tem pelos. Essa é a verdade com a qual os julgos precisam lidar
Mas a mesma corpa que desagrada também pode ser enaltecida, sentimentos são como ângulos, sempre dependerá das perspectivas.
luabia
Fissura-r
A primeira fissura que posso lembrar do meu corpo, está em um de meus dentes. É um dente da frente,
aconteceu quando eu era criança. Junto dessa pequena rachadura, ficaram as lembranças de sua
causa.
Mas, nem só fissuras físicas e visíveis compõem um corpo. Há outras. Outras várias rachaduras
invisíveis que compõem os corpos. E é sobre as fissuras invisíveis do meu corpo de mulher, que esses
desenhos falam.
Fissura é sobre a abertura de cortes, para que respirar seja possível.
Fissura é sobre feridas, sobre os rasgos de cada encontro, sobre cortes na carne e na alma. Mas
também é sobre obsessão, é sobre estar fissurada em dores vermelhas. E nem só dores, mas memórias
e sensações.
É por meio das fissuras que transbordo.
É por meio de Fissura-r que tenho transbordado.
luana diogo
lucas cardoso
luci rivka ramos
feitiço
esse poema é um feitiço.
a dor de começar é
o mais perto de parir que posso chegar
e assim se traça o círculo
em lágrimas, cinzas e rímel-
nos melhores dias.
transformo vontade em versos
potência em ritmos
visões me virtudes.
traduzo a noite em ar
uma transição pigmaleônica
a cada dia aprendo
que a cobra
que chamo
coluna
pode se movimentar
às vezes até mesmo
dançar.
é o shabes das bruxas judias
lésbicas travestis comunistas
e o feitiço é mui judeu:
que estamos vivas apesar
de todos os trens para auschwitz
estamos vivas apesar
das operações tarântula
das piadinhas dos conhecidos
estamos vivas apesar
de todo mundo que já te conhecia
antes errar teu nome e
você não saber só explode
ou se sente culpada
estamos vivas apesar de ninguém
entender nada e sempre termos de explicar
estamos vivas apesar de
tanto,
que estamos vias
comemoramos
esse feitiço é pra lembrar que sobrevivemos.
luciana rodrigues
como desaparecer completamente
ma njanu
não sinto sem que sintamos
corpórea
I. rostos em série e coloridos entre tons quentes destacam-se numa escala cinza.
II. não sucumbimos ao chegar aqui. mesmo ante todas as investidas, compartimos a experiência do
corpo, o gosto, a face na superfície do desejo ou a própria sensação, que caminha na presença.
III. EU TAMBÉM SINTO e não sinto sem que sintamos.
IV. a queimação urge entre o medo e a coragem: resistências contra a mortificação. seja pelo praguejar
e na esconjuração, os rostos distorcidos flutuam para a incandescência de ser, isto é, desatando cada
um dos nodos coloniais fixa-dores.
V. a plasticidade como elogio do movimento: quando “estou sendo” destruo toda imobilidade e as
sintaxes que nos dissolvem / transfigurar, aqui, é demolir a ideia de inexistência da sensibilidade.
madu moreira
marcela cavalcante
marcella elias
Transmuto e liberto
Consciente do meu movimento
Afluente
Sigo
O que era ar
Transforma-se
Cada vez mais terra
Germinei semente
Chamada Benjamin
Sigo
Entre imagens
Fertilidades
Pilares
Frenesis
Cultivando frutos
Encontro
Um amor
Aceito, enfim
Decido
Não sabotar-me
maria macêdo
CORPOTERRA
Moldagem de corpo pós chuva que se refaz na terra. Margeando as veias corpo a dentro, do barro que me fecundou e me fez cria.
Corpoterra, desencontro e parada pra recomeço, gerados a partir do processo de migração do campo para urbes, da desconexão com os pés que não podiam caminhar descalça sobre o asfalto, da falta de terra e planta, e da cidade que mastigadora de mato. É a retirada de vola pra casa, físico e subjetivamente. O descanso na força que me pariu e que anuncia os futuros do agora.
maria rosa menezes
marianne bonfim
querida mamãe
querida mamãe
sei que você sente muito
porque também sinto
nossas estrelas são diferentes
mas a lua
é a mesma
assim como o mundo
o mesmo
punhal
que nos assassina
querida mamãe
sinto muito
porque você também sente
nossos galhos
no outono
suavemente tocam-se
no inverno
quebram-se
mas nossas raízes
são as mesmas
bem como o solo
o mesmo
berço
vazio
querida mamãe
sabemos
como dói
sentir muito
sempre
e por isso guardo
pedaços do espelho
que um dia foi seu
mel andrade
melissa gurgel
micaela menezes
monstra
nágila freitas
Gênese
A fogueira da vida é imensa.
Dela, o laborar de muitas faíscas
acendeu a essência do mundo.
No meio de tantas faíscas
está a singular faísca,
a que deu a grandeza
de seu fogo:
a própria gênese.
Mas, é o fogo
que tem a faísca
só como uma faísca.
A faísca é, porém,
do fogo a essência.
É bom, pois, notar que
há sempre uma pequena faísca
por trás de um grande fogo.
_ Poema do livro "O Poema é mais belo que o título", obra poética de NÁGILA de Sousa
nanda costa
nayana camurça
palito
paloma pajarito
pâmela queiroz
cariri retinto
paula soares
pequeno marginal
rafa eleutério
rafaela teixeira
raíssa dias
ranielle lessa
Crato, 23 de outubro de 2020
Eu gosto de chá... Eu gostava do chá de cidreira do quintal lá de
casa, casa 72, porta, janela, teto, quintal e uma mãe... O chá era
verde, chá que não volta... Já não tenho mais um quintal, nem a
minha mãe que fazia o chá... Chá verde, o chá era verde, porque as folhas eram arrancadas diretamente da planta, planta plantada no quintal lá de casa... Outro dia experimentei fazer um chá de cidreira com folhas secas, mas ele não era verde e nem tinha o mesmo gosto, nem o mesmo cheiro, nem a mesma vontade pra tomar... Me decepcionei, mas só porque carrego a lembrança do chá que era verde.
rebeca marinho
hoje dentro do mar
fiquei boiando de mãos dadas
com ela
perceber que não cabe
colocar
mais nehuma
palavra
na orelha dela
pq o brinco
já é grande
e pesado demais
acordei
levantei
fui fazer o café
ainda sonolenta
não percebi o pano
na boca do fogão
esperando ansiosamente
para queimá-lo
em suas labaredas-mãos
percebi antes do fogo se alastrar
o pano
e o tirei
intacto
é preciso de tempo pra queimar
quando vou ao mar
com pessoas
o cheiro delas
voam até o meu nariz
te vejo deitada de costas
tua xana parece me chamar
vem, coloca tua mão em mim
eu coloco
tu logo fica de quatro
eu fico de dois
entro
e beijo
você tem que saber
agora
sobre a diferença
entre
banqueiro e bancário
um coloca o banco na calçada,
brinco de pérolas
e bota banca
o outro
tem uma cárie
no dente
de raiz
e de leite
morno
tirado do peito da mãe
com o bico ferido
e mastigado
por um neném
que chora e se esguela
porque só quer uma coisa
o peito
tem algo muito carinhoso
quando alguém em sua casa
já te espera com a porta aberta
como gritasse
entra!
sara oliveira
ladainha de liberdade
Benin nasceu antes das oito da noite, como se viesse ao mundo sabendo a hora de voltar pra casa O Salvador, por inocência e desleixo ou talvez por rebeldia, veio às onze.
A angústia veio nove meses antes, sem hora.
Sem crença, sem credo, plantei cinco espadas de Ogum pela casa três ave marias para cada erê antes da escola
Criava armaduras quase impenetráveis que combinasse com a cor quase azeviche da pele de cada menino. Salvador largou a armadura aos quinze, impenetrável demais. Ele precisava deixar o amor entrar, e amou. Atravessava a região nobre da cidade pra amar tudo o que lhe fazia esquecer de si mesmo, anunciava a chegada sempre às onze da noite enquanto eu dançava a ladainha do medo:
“Quebra senhor, todo o quebranto do mundo branco”.
Dois dias depois a maldição se findava, encontrou pela quebrada um pequeno Mansa Musa que lhe apresentou o amor. E foi feliz.
Benin, por sua vez, nunca soltou a armadura, sempre dura demais, pequeno exu sem movimento por medo, atrofiou-se.
Salvador, ibeji mais novo, corpo fechado, na tentativa de salvar a si mesmo, me desobedecia. Descosturava cautelosamente os retalhos da armadura presa a minha caixa torácica que protegia meu coração-alvo. Eu fingia não perceber porque queria que ele continuasse desatando Salvador, pequeno ogum de punho fechado fez uma ladainha ritualística de liberdade.
nastroyanni
sid
socorro souza
suzana gois
Eleições, o rolo!
Numa tarde de domingo, toda minha família estava reunida. Seria um dia como qualquer outro, a não ser por conta do barulho que tomava conta da cidade: fogos de artifício, buzinas de carros, músicas eleitorais e, ainda por cima, passava em frente à minha casa.
Aquele barulho era inevitável em época de eleição. Outra coisa que não dava pra controlar era a vontade de ficar na calçada de casa para acompanhar a carreata. Foi isso que todos fizeram, correria em casa para não perder nem um segundo dessa atração que só acontece a cada quatro anos. Prefeito cumprimentando todos que passavam, gasolina de graça para os que comparecessem. Diversão garantida pra uma cidade que durante todo o ano não tinha nada de atraente.
Fim da carreata e, logo depois, veio uma procissão. Todos em casa querendo fechar as portas, mas veio o sentimento de culpa, por ter assistido a uma coisa tão banal e deixar de lado algo tão religioso. Decidido! A família inteira iria assistir àquela procissão, a única da rua que decidiu continuar de portas abertas.
Depois da procissão, vestígios da carreata ainda vagavam pelas ruas, quatro homens segurando bandeiras de candidatos ainda passavam. Resolvemos então continuar nosso descanso de domingo. Porém Decidimos tarde demais. Quando menos se esperava, em nossa direção, com armas apontadas e ordenando que entrássemos, iniciava-se assim mais um assalto.
Mesmo com a ordem de que não nos mexêssemos, foi correria pra todo lado. Tentei me esconder no banheiro, lá já estava minha irmã, que nem sabia o que se passava. Não foi só eu que pensei nesse esconderijo, então me refugiei no banheiro junto com a minha irmã e mais três pessoas.
Sem saber o que estava acontecendo fora do banheiro, mesmo tensos, percebemos que em cima da pia tinha uma quantia em dinheiro, foi então que decidi guardá-lo dentro do rolo de papel higiênico. De repente, a fechadura se mexe, todos calados até que o silêncio é quebrado pelo chute na porta. Depois de muitas tentativas de arrombar a porta, e de muitos gritos intimidadores, decidimos que o melhor a ser feito era abri-la por conta própria.
Quando saímos do banheiro avistamos o restante da família feita de refém, então nos juntamos a eles, com nossas cabeças baixas, sentados no chão e observando os assaltantes vasculharem a casa.
Até que um deles, já desesperado por todos afirmarem que não havia nenhum dinheiro na casa, ameaçou atirar na minha cabeça caso ele encontrasse algum dinheiro. Então fico aflito ao lembrar-me do dinheiro deixado no banheiro.
Quando menos esperávamos ouve-se um barulho de sirene. Não sabíamos se ficávamos aliviados ou se nos desesperávamos mais ainda, com medo da situação piorar. Assustados, três dos assaltantes fogem pelo quintal e pulam o muro antes que a polícia entrasse na casa. Dentro da casa restava apenas um assaltante que foi encarregado de ficar com as mochilas que levavam nossos pertences.
Com a arma apontada para nós, o bandido nos forçou a permanecer dentro do quarto. O que não sabíamos era que a polícia estava do lado de fora da casa tentando arrombar a porta. Logo depois ele se apressou em fugir, mas era tarde demais, pois a polícia já havia conseguido adentrar na casa.
A polícia o deixa encurralado, e o bandido não vê alternativa a não ser deixar as mochilas de lado e fingir ser da família, entregando seus companheiros e avisando que fugiram pelo quintal. A polícia, inexperiente, acredita que ele está falando a verdade e o deixa de lado, então ele aproveita a situação para sair pela porta da frente, enquanto os policiais procuram os assaltantes, que já haviam fugido.
Após perceberem que os bandidos já deviam estar longe, cessaram a busca e entraram no quarto, onde estávamos, para perguntar quem seria aquela pessoa que contou que os bandidos fugiram pelo quintal, e só então eles perceberam que haviam deixado todos os bandidos escaparem.
Por fim, os bandidos não levaram nada a não ser nossa coragem de ficar na calçada.
taciana santos
AMÃOQUELIMPAMEUSANGUETAMBEMSESUJA é uma perfomance de protesto. Criada em 2018,ela
surge da inquietação com as tentativas de silenciamento que atravessam mulheres negras, periféricas,
LBTs, e suas multiplicidades. A performance, que consistia em permanecer deitada no chão, e que, ao
passo que eu me levantava, outras mulheres liam uma carta-manifesto, transforma-se a partir de sua
reapresentação em 2019, quando conheço a música Breu, de Xênia França e também a mitologia da
orixá Nanã, que conta que ela quem cedeu o material para a criação da humanidade, que ela é a guardiã
dos portais do ciclo da vida. Assim, este trabalho passa a versar sobre algo que nos irmane, algo além
da dor, que permita que este ciclo se encerre, para poder dar passagem a construção de novas formas
de afetos.
talita sales
maturação
tania cerqueira
A Mariposa
Uma mariposa branca entrara na minha cela
Bela e desesperada, sacudidela no cantinho
Como se não enxergasse o seu caminho
Tentei fotografá-la, mas estava longe demais
Para que qualquer um pudesse alcançá-la
Fitei seus movimentos enquanto ela roubava meus pensamentos
Quando mudou de direção, deslizou no ar até mim
Em busca de luz, desenhou um espiral e se decepcionou
Encontrou apenas uma mente vazia numa menina perdida
Dentre a escuridão ao redor, por fim
Desapareceu enquanto eu me desconhecia
Não vi para onde ia... Só sei que desde esse dia
A menina vazia encheu-se de poesia