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 bahia

ana lua

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ana reis

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de virtualidades revisitadas

ananda nunes

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carol dias

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adubar o sonho

Me arvoro a escrever 

me atrevo 

comprometo 

tudo guardado que não cabe no peito 

Ergo-me na vertical sendo árvore 

caminhando para o horizonte 

mente pele carne 

sou corpo 

e quero crescer 

Quem procura sabe 

Com as vistas ainda turvas 

recebendo a energia quente do sol 

tudo na minha frente reluz 

Sonho em busca de imagens que minha visão não consegue enxergar 

A tinta está só de passagem riscando a folha levada pela caneta nos dedos em movimento gesto feito à mão 

como as ondas vem e vão 

e tudo que está preso sendo balançado pelo vento 

Continuar é sonhar Continuar a sonhar Continuar é sonhar 

Continuar a sonhar Continuar é sonhar 

Continuar a sonhar Continuar é sonhar 

Interessada em práticas que me ensinem a continuar a sonhar 

Continuar é sonhar 

Continuar a sonhar Continuar é sonhar 

Continuar a sonhar Continuar é sonhar 

Continuar a sonhar

Sinto falta de simplesmente andar 

Repetição ritmo vibração viva pelve centro cerne ser estar em movimento energia do sol pulsando no corpo 

fronte no chão 

em prece 

aterramento 

reconexão 

Qual a força que te puxa da superfície e te põe de pé? 

pele pra dentro pra cima 

firme caminhar 

Continuar é sonhar 

Continuar a sonhar Continuar é sonhar 

Continuar a sonhar Continuar é sonhar 

Continuar a sonhar 

Fio da memória 

batimento do coração 

refazimento 

rebentar 

cau

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bonsai

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flora tavares

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capilares

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gabrielle guido

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judá nunes

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Desde a infância, quando me entendo, entendo também as regras e os códigos. Ou seja, como tal comportamento era/é proibido por não ser adequado ao que foi pré-estabelecido para o meu corpo. Sobre como eu não deveria me comportar, os gestos que eram "feios", o que não usar, quais lugares eram proibidos... Estou falando aqui, dos gestos e comportamentos que influenciam um imaginário coletivo sobre o que é ser "homem" ou "mulher", "hetero" ou "homossexual". Daí me encontro mergulhada na necessidade de articular estratégias de camuflagem para fugir das repressões e imposições de condultas cisheteronormativas, o que nem sempre se apresenta como uma tecnologia de disfarces normativos da representação cisgênera e heterossexual, inclusive, ela pode se apresentar como uma distorção ou uma grande confusão estética, causando caos e contradições.
O Brasil é um país predominantemente cristão e como tal, nasci em berço católico/protestante e cresci dentro dos fundamentos e cultos protestantes. É importante então relembrar que a constituição do que conhecemos hoje como Brasil é baseada em processos coloniais, logo, fundamentalizadas no cristianismo. Assim, a política do cristianismo colonial é um instrumento bélico de controle civilizatório e, como tal, prevê códigos e uma norma. O corpo que ñ se adequa ao "código binário" é submetido aos processos de racismo, endemonização, escravidão, tortura e morte, a morte como prática de silenciamento, exclusão e apagamento permanente da memória material e imaterial desses corpos que tentam nessa estrutura, sobreviver ou viver na excelência e construir táticas politicas sociais de equidade e libertação. Quando eu reexisto às normas desse código, o cistema não me identifica como humano e porventura, me acusa como corpo estranho. Na medicina, quando o corpo humano percebe um "Corpo estranho" dentro dele, ele reage para expulsar este "objeto". Essa metáfora é adequada para entendermos que a norma colonial estabeleceu corpos adequados e corpos estranhos, dessa forma, quando o corpo estranho é detectado todo o cistema se elabora para expulsão do mesmo. Nesse sentido não há outra escolha, se não, de construir a partir do próprio corpo e das marcas deixadas as minhas próprias estratégias de sobrevivência. Acho importante dizer que, não estou determinando uma outra norma, muito menos criando um manual a ser seguido a risco, estou aqui construindo um processo pessoal de libertação e emancipação do meu corpo e da minha identidade enquanto performance. Como minha vó diz, "Viny, desde pequenininho é cheio de lambança". Se pensarmos no quanto o mundo tem de "lambança" e significar essa palavra como "diferente" ou "fora do normal" (cisgênero), sim eu (Judá) sou cheia de lambança.

Texto – Códigos Binários 

lara duarte

lara duarte

amor de pai

Eu tenho uma ex-filha
Não planejei o rompimento. Aconteceu. Estamos finalizando os trâmites legais, terminando de assinar a papelada... Pedi que ela retirasse o meu sobrenome. Eu sou um homem muitíssimo prático: ame-me ou deixe-me. A burocracia me entristece, me enoja na verdade, mas essa menina, menina não, essa mulher me enoja. Não tenho interesse na totalidade da personalidade dela, simplesmente não tenho. Se ao menos ela se mantivesse discreta...  Não. Escolheu um modo de vida que me desrespeita completamente, me agride. E isso ninguém vê: o quanto ela me afronta... Só vê quando eu grito
brigo
bato
Mas tem toda uma vida de insolência e desacato da parte dela. A violência é só uma reação... Quando pesa pra mim não tenho a quem pedir ajuda. Eu que dei tudo. Tudo. Dei até o que eu não tinha. E dei pra quê? Pra ela escolher ser esse tipo de gente? Não. Não é justo.
Não.Não.Não.
Não é justo com todo o investimento financeiro e afetivo que fiz. Gostaria de recorrer a algum tipo de autoridade, uma espécie de SAC que pudesse ouvir a minha reclamação, o meu desconforto em ter que ser pai de uma mulher como aquela. Ela não me agrada. Não corresponde as minhas expectativas do que seria uma filha bacana, uma mulher bacana... Bacana não, pelo menos medíocre, ou tolerável, eu já estaria muitíssimo satisfeito.
Tento ser racional: querida, se você quiser continuar usando o meu nome, o nome do seu avô e fazendo esse tipo de imoralidade que você faz, pelo menos devolva parte do meu investimento. Podemos calcular juntos, eu te ajudo.
O pré-natal
Fraldas
As roupas cada vez maiores
A escola e o material escolar
O plano de saúde
O curso de inglês
Depois eu ainda tive que pagar o seu anticoncepcional, a sua cerveja ruim, as aulas de teatro. Eu deveria ter sido mais rígido.  Paguei o seu aborto, seu primeiro aluguel, as férias pra controlar sua depressão. Meu pai colocava o pote de requeijão na mesa e dizia “precisa durar pelo menos duas semanas”
Quer comer mais? Trabalhe.
Meu erro foi ter dado tudo na mão. Minha filha virou uma mulherzinha burra, cheia de opinião, de posicionamento político... Quer fazer revolução com o papai aqui bancando tudo? Fica fácil.
Só tem uma coisa que eu não me arrependo do custo: a cirurgia nas mamas. Sim. Ficou lindo. Ela tinha um peito murcho, caído, peito de lactante, deveria ser do tanto de gente que mamava ali... Fomos a clínica de um conhecido meu, o Dr. Rogério, conversei com ele sobre a situação, ele parcelou a cirurgia em 12 vezes, ofereceu uma lipo... Grande camarada, a gente tinha o mesmo senso estético, frequentava as mesmas prostitutas. Concordamos que os seios mais lindos eram os de Ana Tereza, durinhos, firmes, nem grande, nem pequenos, dois faróis iluminando a escuridão do mundo. Minha filha achou ruim, se incomodou em ver as fotos da minha amiga. Disse que não queria colocar silicone, apenas levantar um pouco. Minha filha, vai cair. Vai cair e eu não vou te levantar dessa vez.
Minha filha nunca gostou de conhecer as minhas amigas. A mãe dela proibiu. Disse que ela nunca conseguiria se relacionar com homens quando fosse adulta, bobagem. Os homens querem coisas simples em uma relação... Eu até criei a equação do sucesso matrimonial: casar só se for com uma mulher que tenha metade da sua idade + 1. Talvez seja necessário contratar outra mulher pra limpar a casa, enquanto a sua noivinha vai à academia... Questão de ajustes. A melhor parte de casar com uma noivinha idade +1 é que ela não vai te abandonar ou se rebelar como uma filha de verdade. Ela não vai superar o complexo. Vai seguir firme e forte ao seu lado, até o dia do divórcio. E todas sonham em ser uma noivinha. Em ser a oficial, a dona da casa, a mãe dos filhos. Só as feias não sonham. E a minha filha nem é feia. Só se cuida mal. Lembro bem quando começou com uma história de não se depilar. Uma fase difícil pra mim. Chegou ao absurdo de me perguntar quem é que não tinha pelo no corpo....
Crianças!
Que era um ato político contra a pedofilia. Encheu a boca pra falar que as mulheres são infantilizadas... Ato político? Tem sei lá quantos milhões de brasileiros passando fome e ela fazendo ato político com os pelos? Pedofilia é crime, meu amor. Por mim fazia castração química num filha da puta desses.
Depois começou com uma onda de ficar com o peito de fora. Aí foi pra matar. Eu que paguei por aquele peito. Saía pelada em protesto, em festa, nas peças... Um dia um colega do Jiu Jitsu me perguntou “Você viu as fotos que a sua filha fez?”... O que foi que eu fiz pra deus?
“É político, meu pai!”
“É punheta, minha filha!”
Tentei orientar...  Entendo que existe esse momento no mundo... Mas tudo tem limite! Existe um código de formalidade. É difícil pra mim, por exemplo, me concentrar quando estou dando aula e as minhas alunas aparecessem sem sutiã ou de short curto. Elas acham o quê? Que não desperta o tesão? Não tô dizendo que elas se vestiram pra mim, mas a gente vive em sociedade, estamos unidos por um conjunto de leis e normas que... E não adiantava mais gritar, berrar, chamar de vadia, dizer que precisava honrar a família... Ela falhou como filha. 
Eu poderia enumerar mais uma sucessão de fatos que embasam a minha decisão de romper com ela, mas é só mais uma derivação em que eu me sinto envergonhado e humilhado. Sempre cumpri com as minhas obrigações de pai, nunca deixei faltar nada. E não é sobre dinheiro. Definitivamente não é. É sobre cuidado e proteção.
Teve uma vez que ela arrumou um namorado. Péssimo. Feio. Marginal. Ela ficava se enfiando em tudo que é buraco, lugar sujo, pobre. Eu chamei um amigo policial, fui até a espelunca em que ele trabalhava
“Se você for pego com droga e a minha filha estiver junto, eu te mato”
Depois disso a gente ficou amigo. Vi que ele era esforçado. Trabalhava pra subir na vida que nem eu... Até da amiga nova que eu tinha contei pra ele, mostrei foto, apresentei o garoto pro Dr. Rogério... Boa gente...
Aí eu enfartei.
Achei que ia morrer.
Eu sou gente boa pra caralho pra morrer. Acho uma sacanagem fazerem isso comigo.  Ajudo tanta gente. Desfruto a vida. Só quero sossego. E essa menina vai acabar me matando. Depois do enfarto eu mudei. Mudei mesmo. Baixei um aplicativo de meditação, não recebo mais processo por assédio moral, parei de fumar, tô fazendo dieta... Um novo homem. Resolvi até escrever um livro. Vai se chamar “Cozinhando Para Comer Alguém” só as minhas melhores receitas, e as melhores mulheres, tudo harmonizado com a bebida adequada.
E fiquei em paz com a minha decisão. Eu não planejei o rompimento, ele simplesmente aconteceu. Entrei pra Associação dos Ex Pais Anônimos. Fiz bons amigos. Às vezes as reuniões são lá em casa, a gente abre um uíscão, pega metros e metros de papel panamá, alta gramatura, e escreve em tópicos, do mais grave ao mais leviano, todas as expectativas frustradas por aquelas ingratas... É catártico. Muita coisa em comum. A gente enrola o papel de maneira cilíndrica e introduz na região anal... Num uníssono suspiro de prazer e relaxamento, dilatamos. Com mais espaço, talvez um dia, eu consiga verdadeiramente dialogar com a minha filha.
Filha não. Ex-filha.

 


...

 

Eu tenho um ex-pai.
Sempre desejei romper com ele. Finalmente aconteceu. Achei que poderia sentir falta, sofrer com a ausência... Não. Nada. Zero. Planejei inúmeras despedidas: escrever te odeio papai com sangue de menstruação ou com bosta no vidro do carro dele; Quebrar a televisão de plasma e compor uma escultura neo barroca com os caquinhos; Me recortar de todas as fotografias pra ele não ter ao que recorrer caso queira lembrar do meu rosto; Não.
Não fiz. Ele rompeu a corda. A corda que eu parei de puxar faz muitos anos. A primeira coisa que eu senti quando soube da nossa separação foi um gozo. De quem abre o botão da calça depois de um prato de feijão ou desata o sutiã apertado ao chegar em casa. Desde que nasci eu nunca consegui chegar em casa... Mas sigo tentando. Quando eu era um espermatozoide que morava no ovo esquerdo do meu pai, a gente até que se dava bem. Depois que eu saí de lá, a nossa relação foi ficando complicada.  Essa coisa de ser dono apenas de metade do meu DNA, fragiliza o ego dele. Se fosse pelo menos dois terços... Mas não. Tem muito em mim que ele olha e não se vê. E se tem uma coisa que é inconcebível na cabeça masculina é que determinada situação não é sobre ele. Meu ex-pai fica transtornado quando eu não quero a opinião ou a ajuda que ele tem pra oferecer... Aprendi muita coisa por mim mesma. Aprendi muito através da observação. Por exemplo, os homens casados se dividem em dois: os que me comeram e os que ainda não me viram.  Os que me comeram se dividem em outros dois grupos: Os culpados e os canalhas assumidos. Os culpados são geralmente de esquerda. Os canalhas usam camisa polo.
Já as mulheres casadas também se dividem em dois: as que gozam e as que eu ainda não chupei. As que gozam se dividem em outros dois grupos: as culpadas e as que se apaixonam. As culpadas são geralmente artistas. As que se apaixonam querem casar.
Aos 15 anos, me certifiquei de que jamais me casaria. Depois da valsa, amputei os meus dois dedos anelares com uma faquinha de serra. Não senti dor. Nada. Zero. Apenas um alívio imenso de não correr mais o risco de posar pra uma fotográfica cafona, apoiando as mãos no ombro de alguém. Meu vestido lilás-debutante decorado de vermelho-vivo. Me senti devidamente apresentada a sociedade e desmaiei com a perda de sangue. Meu pai me carregou nos braços até o pronto-socorro e ele mesmo fez o curativo nas minhas mãos. Ficou preocupado comigo, queria me internar só pra poder me controlar ainda mais... Consegui gritar até o remédio fazer efeito:
Meu corpo, minhas regras! Meu corpo, minhas regras! Meu corpo, minhas regras!
Fora isso, a minha adolescência foi bem tranquila. A coisa estremeceu mesmo quando eu entrei pra faculdade. Cursei Artes Cênicas. Com a primeira grana de uma peça, busquei casas que coubessem no meu orçamento de 300 reais. Eu já tinha desde os 12 anos uma noção de como alugar um espaço sem fiador, além de um arquivo com itens de decoração feitos de sucata e móveis de pallet.
Acabou a temporada.
Qualquer grana com mais de dois dígitos, virava a possibilidade de chegar em casa. E nada. Zero. Toda vez que eu arrumava um trabalho, um frela, meu pai reclamava, fazia bico. Eu não sei como ele espera que eu consiga dinheiro. Talvez trocando de patrocinando, casando com um cara rico. Mas não. Não é sobre dinheiro, definitivamente não é. É sobre controle e coerção.
Depois que eu fiz a cirurgia nos peitos, me senti muito mais confortável nas aulas de expressão corporal.  O Cássio notou a minha... Transformação. Ele foi meu professor de expressão corporal I e II, depois de técnicas mistas IV... Quando eu fiz o procedimento foi com a intenção de ficar mais bonita pra mim. Mas se o Cássio notou, eu não tive culpa. Entre a gente não era só sobre sexo, rolava muita troca de ideia, muita referência, basicamente ele falava e eu ouvia, mas ouvia linda e de peito em pé. Ele dizia que eu era super madura pra minha idade, que não era como as outras alunas que ele ficava... A primeira vez que a gente transou, eu abri a gaveta de calcinhas da esposa dele pra pegar uma meia, tava super frio... Mas mesmo com o pé aquecido eu não consegui dormir com medo dela chegar. Nunca senti nenhum tipo de culpa, nem de solidariedade às esposas cansadas. O Cassio era sossegado, desses homens que desfrutam a vida, nada a ver com meu referencial masculino bizarro. 
Já formada, fiz parte de um coletivo de teatro experimental, e resolvi me alistar a junta de Fortalecimento Feminino como pesquisa para um novo processo criativo.
Foi uma hecatombe.
Dizem que é bastante comum esse tipo de explosão com o retorno de saturno, e aos 28 anos eu definitivamente me encontrei. A junta de Fortalecimento Feminino é uma organização paramilitar criada com o intuito de capacitar todas as mulheres a sobreviverem a uma família. Mulheres cis já podem se alistar após a primeira menstruação, e tem sido cada vez mais comum jovens guerreiras defendendo seus corpos. A gente faz basicamente um treinamento de condicionamento físico e mental, ensina a manipulação de armas de fogo e facas, primeiros socorros, oferecemos aulas de pole dance e estamos editando um guia de sobrevivência online.
Depois dos primeiros anos de treinamento eu mal saía do quartel, nem lembrava dos meus amigos civis e estava pra ser promovida, quando notei uma movimentação estranha entre as minhas superiores. Tínhamos recebido um grupo de mulheres do norte do país que aprenderam a manipular o fogo sem o auxílio de luvas ou qualquer outro aparato. Elas moviam enormes chamas por quilômetros de distância. Muitas delas não tinham uma das mamas para facilitar o manuseio de arco-e-flecha, e chegaram propondo uma espécie de golpe de Estado ou revolução, eu não entendi muito bem.
Incendiamos lugares muito específicos pra recomeçar: O Palácio do Planalto, A Casa da Moeda, as fronteiras entres os países... Era lindo. O fogo é tão hipnótico e sensual. Também nos mantivemos firmes ao nosso proposito inicial: proibimos a constituição de famílias tradicionais, bem como inauguramos o fim da propriedade privada. Consideramos “família” grupos de desconhecidos de até 100 pessoas que dividem o mesmo espaço de convivência. Buscamos agrupar de 100 em 100 tendo como base uma sinastria astrológica refinada, juntando de maneira harmônica e criativa essas novas famílias. A cada mês promovíamos orgias públicas para que os cidadãos pudessem lidar com a agressividade de maneira saudável, e também criativa: cada pessoa poderia também declamar, interpretar, esculpir, tocar, performar, imaginar o que bem entendesse nas orgias mensais. Durante os períodos de guerra, o nosso exército seduzia o exército inimigo, e todos gozavam em nome de seus ideais. Os que resistiam ao gozo a gente queimava, ou executava a tiro, a ausência dos anelares me transformou numa exímia atiradora.
Aí eu enfartei.
Achei que ia morrer.
Essa coisa de morrer deixa a pessoa um bocado sentimental. O médico me perguntou
“tem histórico de problema cardíaco?”
Acho uma sacanagem fazerem isso comigo.  Resolvi procurar o meu ex-pai.
Quase que não o reconheço pela fragilidade que a velhice colocou no rosto dele. Disse que agora era escritor, e terapeuta sexual. Morava num edifício com outras 99 mulheres, e que sentia muito tesão pelas marcas de queimadura de cada uma delas.
Concordamos que tudo foi como deveria ser, não existia conciliação possível naquele formato em que a gente era obrigado a viver.
Ele autografou o seu último livro, me ofereceu um uísque e me desejou boa sorte com o coração. 

lira

lira

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quando tudo isso acabar

 

vou estar de volta em teus braços
quando tudo isso acabar
de volta em teus lábios,
de volta a teus seios
de volta ao meu lar
quando tudo isso acabar

eu vou poder te tocar
quando tudo isso acabar
eu não precisarei ficar dentro de casa
e te terei dentro de mim
e mal posso esperar para chegar lá
quando tudo isso acabar

às vezes o que me mantém sã
é ansiar por essa foda marcada
com hora e data
milimetricamente calculada
repetidamente imaginada
idealizada
qualquer sonho erótico contigo
não chega aos pés de como eu vou gozar
quando tudo isso acabar


e como eu vou te amar
e te dengar e te mimar
quando tudo isso acabar

a gente vai criar um novo sentido à normalidade
o que a gente sempre fez com facilidade
a gente sempre negou a moralidade
imposta pela tradicional sociedade
então acho que vai ser bem natural
quando construirmos juntas um novo normal

 

quando tudo isso acabar
a gente não vai mais precisar ter contato físico dosado
nem precisar andar junto, mas afastado
parece até que eu tô falando da pandemia
mas eu tô falando da LGBTfobia
velha conhecida de todo dia

 a gente sempre foi sapatão demais
então quando tudo isso acabar
me prometa que a gente vai ser mais
juro que vamo morar juntas
vamo ter nossa casa, nossas plantas, nossos gatos
e vai ser difícil pra caralho sair do quarto
não pelo isolamento, mas pra poder ficar de quatro
de lado
em cima
embaixo
por dias a fio, não teremos mais mortos pra contar, só a nossa saudade pra matar

Quando tudo isso acabar talvez eu tenha um pouco mais de calma
e eu consiga controlar a ansiedade que controla minha alma
talvez eu consiga viver com menos medo por você
e eu sei que eu vou me sentir mais segura
quando acordar numa manhã em que eu possa te ver

eu preciso que tudo isso não acabe com a gente
antes disso tudo acabar
essa não é só uma poesia de saudade
não é só uma poesia de vontade
é uma poesia de necessidades
porque eu preciso te amar
e a gente ainda tem muito pra beijar
muito pra gozar
eu lhe prometo estar viva
me promete o mesmo
promete que fica bem porque
é tudo que eu preciso pra tudo isso acabar

 

Lira
21 de maio de 2020

maria bosetti

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mariana david

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mariana paim

mariana paim

série desejo

I

Dentro de mim há um monstro

ele me arranha com suas garras compridas

voraz, dispensa decifrações

antes devora-me 

 

II

Se desfaz fio a fio

e descortina pela pele 

do infinito a tessitura

 

III

Deixa em cada poro cicatrizes

às quais tentamos inutilmente 

chamar desejo

 

IV

É sempre mais difícil

capturar uma palavra

em pleno voo

padmateo

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raquel bacelar

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tali boy

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yasmin nogueira

yasmin nogueira

Intervenção urbana Boa cabra

Imagens de Keila Serruya

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Embrulha-me o estômago recordar dessa condição objetual em que éramos colocadas,
coisas, peças, instrumentos negociáveis os quais eram apresentados repletos de adjetivos
qualificando o produto, produto-corpo, produto-mulher, produto-leite, assim como as
qualidades para a execução de afazeres domésticos, porque não bastavam os usos sexuais
do corpo, o instrumento de procriação e aleitamento. Independente de nossas condições,
se gestantes ou recém-paridas, a vantagem em nos adquirir estava também no investimento
em obter além de uma ama, alguém para lavar, passar, engomar, coser, cozinhar e todas as
demais ocupações com o lar.
Sob o adjetivo prendada, éramos expostas como vitrine, afinal, a propaganda é a alma do
negócio. Além dos atributos para a manutenção das casas, eram chamativas as frases que
anunciavam o muito bom e abundante leite, a “imagem ideal de ama de leite requeria,
portanto, que seus corpos fossem enaltecidos em termos dos atributos físicos e biológicos
usualmente desejáveis, por exemplo, pelo fato da lactante ser “robusta” ou ter ‘leite
sadio”1.
O leite abundante era umas das importantes qualidades, deveríamos ser boas reprodutoras
para que o alimento fosse frequente e novo, como a negra Elvira nos registros da Santa
Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, em que serviu por oito anos, de fevereiro de 1861
até junho de 1869. A escritura aponta por meio do nome da proprietária, tratar-se da
mesma cativa, mas os papéis não detalham sua condição de mãe, se tivera filhos e/ou
abortos, apenas que seria boa de leite. “Elvira era uma daquelas consideradas como “boa
cabra”2, como animal farto e disponível para boas práticas de ordenha.
_______________________________________

1 CARNEIRO, Maria Elizabeth Ribeiro. Procura-se “preta, com muito bom leite, prendada e carinhosa”: uma cartografia das amas-de-leite
na sociedade carioca (1850-1888). 2006. Tese (Doutorado em História) - Universidade de Brasília, Brasília-DF. (p. 224).
2 Ibidem, 51.

Designada para usos diversos e ilimitados, incluindo práticas sexuais, a exploração mantinha
um ciclo ininterrupto de produção e reprodução, enquanto ainda pudéssemos estar pejadas e
amamentar, girava a roda da economia. Utilizadas de todas as formas para gerar lucro e
prazer, não importavam os frutos de nossas entranhas, visto que nossas vidas poucos valiam.
A dos negros rebentos menos importava pois o lucro tardava, sem contar que tais vidas sob as
péssimas condições, pouco vingavam.
Corpo-objeto, receptáculo tomado como posse através do ato sexual, a reprodução forçada.
Desapossamento, posição de inferioridade “de sexo-gênero e de raça-etnia e exprimem a
própria possibilidade do uso/abuso daqueles corpos de mulheres subjugados às formas da
exploração compulsória”3.


Escorria por entre as pernas líquido viscoso, espesso, vermelho e quente, não o natural que
retornava de 28 em 28 dias quando não gestava fruto no ventre, não o sangue das minhas
regras, mas o sangue violento do abuso, da violação. Rompidas as barreiras do não, da
negação do ato, era dor que me escorria entre as pernas. Tais práticas “vincaram as relações
sociais e sexuais da sociedade oitocentista sendo, portanto, naturalizadas nas vivências
cotidianas das famílias proprietárias de escravos e também naquelas que não possuíam
escravos, por estarem orientadas pelo imaginário do patriarcado escravista”4.
_______________________________________

3 CARNEIRO, Maria Elizabeth Ribeiro. Procura-se “preta, com muito bom leite, prendada e carinhosa”: uma cartografia das amas-de-leite
na sociedade carioca (1850-1888). 2006. Tese (Doutorado em História) - Universidade de Brasília, Brasília-DF. (p. 231).
4 Ibdem.

Apesar dos nomes organizadamente anotados nos cadernos das instituições como a
Santa Casa, ali não eram de fato os nossos nomes que importavam no documento,
mas o controle financeiro do uso do corpo cativo. Não interessavam sob que
circunstâncias éramos lactantes, se prenhas pela primeira vez, se vítimas de aborto –
natural ou provocado pelas inúmeras atrocidades as que éramos expostas – se
tínhamos filhos que vingaram, se esses poderiam estar com tanta fome quanto os
expostos da Misericórdia.


O nome marcado nas folhas hoje amareladas não atesta quem fomos, continuávamos
anônimas tal qual as registradas nas fotografias dos estúdios sob as lentes do olhar
europeu, permanecíamos silenciadas. Quem foi a pobre Elvira por tantos anos
servindo à Santa Casa? Quais as condições que fizeram de seu corpo um produtor
assíduo de alimento? Registros de nomes não nos fizeram mais humanas que as
próprias cabras. Uma tarja negra cobria nossos olhos, não para que não pudéssemos
ver o que ali se passava, isso já estava muito bem impresso em nossos corpos, mas
não éramos de fato seres identificáveis, de subjetividades relevantes.
De tarja nos olhos e sangue quente e fresco escorrendo por entre as pernas, nossa
produção leiteira era como a atual indústria alimentícia, produzindo para servir, para
nutrir não os nossos, mas os outros, aqueles que ocupam principalmente uma posição
de poder, que especialmente podem pagar. Fui às ruas exibir a dor. Nas imagens:
vendada, ensanguentada, de seios cobertos com a embalagem que acondiciona o
produto resultante da exploração da maternidade.
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*Trecho da tese “Memórias de corpo negro feminino: narrativas poéticas, ancestralidade e processos criativos” de Yasmin de Freitas
Nogueira.(Doutorado - Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas-UFBA)

zeza maria

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